quarta-feira, 27 de janeiro de 2010



A calma com que te amo me assusta;
ela cria um abismo de silêncio, de loucura
entre Eu e Eu.
Um Eu que olha assustado o outro Eu enlouquecido
que está do outro lado do abismo.
Um Eu que mata o Eu que fui do lado de cá.
Um Eu que ressuscita em outro lugar;
superior ao Eu assassino do lado de lá.
Não sei mais onde estou ou se sequer existo.
Pois cada dia que passa, a minha ausência se faz presente
nos dois lados do abismo.
Talvez eu esteja de verdade lá embaixo, escondido, protegido de tantos Eus a se dilacerarem diariamente tão perto do céu, tão perto de ti.
Mas, a procura de quem? Por quem? Por quê?
Quem sabe Eu talvez algum dia encontre a resposta
refletida em um objeto qualquer ou numa poça d'água qualquer,
formada por uma chuva qualquer,
de lágrimas que acidentalmente rolaram da tua face e sem querer formaram um espelho;
sim, um espelho onde eu pudesse não encontrar a resposta,
mas a mim mesmo
e por breves instantes
ver em meus próprios e inexistentes olhos
que é você quem me salva todos os dias,
que é você quem sempre me encontra lá na escuridão.
Talvez em algum dia ou em alguma noite
antes de você derramar a primeira e furtiva lágrima,
um dos meus Eus; quiça o verdadeiro,
te encontre,
segundos antes do eterno choro começar
e te beije.
O primeiro beijo, a última tentação
e o inefável reflexo surgirá agora em teu sorriso,
em meu sorriso.
Seremos então um único ser.
E em nossa mitologia, Eu, Você, abismo e céu seremos o mesmo tudo,
o mesmo nada, a mesma água de uma pequena poça eternamente refletida entre as profundezas da escuridão
e a luminosidade celeste.

Leonardo Roat

terça-feira, 26 de janeiro de 2010



Morreu hoje o último anjo
e o céu chora
por que sabe que agora
será o início de uma nova era.
E o céu sorri
por que agora prepara-se
para contemplar o espetáculo da vingança.
Morreu hoje o último anjo.
Começaram os anos de solidão.

Leonardo Roat


O colapso das coisas
é o som da gota
em um lugar seguro.
E a batida do meu coração
é uma grande linha branca.
Fico sonhando
com algum lugar
abaixo da chuva
e acima dos meus olhos,
com algum lugar cristalino
onde meu corpo possa flutuar
nas brumas do mar em círculos
e eu possa recordar secretamente
que tudo se foi
e eu não tenho mais face.
Agora, a desordem e o caos,
Mãe e Pai tomam conta de mim
e nada além do silêncio
invade meu berço absoluto.
E até me esqueço quando
meu Pai me diz: não se assuste.
Premeditadamente com prazer
já me coloco a preparar o que farei
para conter o inevitável quando ele vier,
se vier.
Assim, vociferado pleo tempo que não passou,
me sento ao terraço
e fito a árvore seca que fica em frente.
E crendo estar sozinho
espero por ela;
a Princesa,
a única herdeira de dois poderes,
sem dar por mim que ela
já está a me fazer compania
desde antes dos tempos serem tempos.
E assim, ficamos,
Eu e Ela
sentados no terraço
em nosso interlúdio infinto;
esperando pela ruptura
que nos leve;
passando pela árvore seca de defronte;
rio acima
ou rio abaixo.

Leonardo Roat

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010



O julgamento errado de todas as formas;
de todas as coisas obriga-me, agora, a caminhar por paisagens que desconheço e me desagradam.
Tornei-me semelhante ao feno de trigo, que sem escolhas, presta reverência a pesada e gentil mão do vento.
O engano de outrora apenas revelou em mim uma dor que estranhamente fazia-se presente em cada canto de minh'alma, ainda que invisível.
E talvez por deveras estranhada, suprimia ao meu ser respirar, sorver da substância imaterial ao qual chamamos consciência.
Porém, meu coração este ser consciente e livre.
Este ser independente; inclusive de mim, sobreviveu.
Nele, ainda pulso eu.
Nele ainda sobrevivo.
E eu pulso magnificamente, inquestionavelmente uma única palavra.
Uma única dor.
Saudade. Saudade.
Repito eu, sem pressa.
Repito eu cem vezes ao meu coração.
Que já me sente fraco em seu peito,
que sabe que minha felicidade, seu destino e sua vida dependem do meu pulsar.
Saudade, pulso eu,
no ritmo da tua presença.
Saudade. Saudade.

Leonardo Roat

O dia em que me tornei Eu.
O dia em que me tornei Eu aconteceu como um dia qualquer.
Daqueles em que acordamos e queremos ficar mais na cama, mas somos obrigados a levantar e sair para fazer... para fazer o quê? Ainda me pergunto isso mesmo depois de tanto tempo.
Para fazer nada.
Nada.
Afinal, nada do que fazemos é para coisa alguma.
Para ser fiel ao que digo, vou descrever o que desejei fazer ao acordar naquela manhã.
Lembro-me que no abrir dos olhos, ou se preferirem, no despertar da alma, fui invadido por milhões de fragmentos que me lembravam meu autor favorito: Fernando Pessoa.
Pensei naquele instante em escrever alguns dos muitos trechos – creio que quase todos que escreveria seriam fortemente influenciados ou iluminados por ele - exatamente na mesma hora em que eles invadiam minha mente ou fossem transcritos para o papel.
Mas não o fiz.
Pois de repente, me peguei pensando em uma reflexão de Rubens Alves, e me indaguei:
“O que me aproxima tanto de Fernando Pessoa? Por que ele me sensibiliza tanto? O que temos em comum? O que Eu tenho de Pessoa e Pessoa de mim?”
Lembrei novamente de Rubens. Concordo plenamente quando ele discorre sobre o que nos leva a gostar de um autor.
Ele acredita que devesse ao fato de estarmos em comunhão, de sermos “feito do mesmo sangue”, “companheiros no mesmo mundo”, não importando a distância de época entre vocês.
E foi assim que descobri.
E foi assim que me descobri.
No dia em que me tornei Eu.
Não fiz coisa alguma, pois coisa alguma serve para alguma coisa.
Apenas percebi que sempre seria um “escravo cardíaco das estrelas”,
escrevendo eternos poemas póstumos à amores recém-nascidos,
e fechei os olhos e voltei a dormir,ou se preferirem, a navegar rumo ao pórtico para o impossível.

Leonardo Roat

Entre outros

Entre tantos

Entre atos

Entre o ato

Entre todos

Entre Eu

Entre Você

ruas familiares

esquinas distantes

janelas próximas

um único destino

e duas saídas.


Leonardo Roat